sábado, 19 de dezembro de 2009

A seleção de conteúdos pelos professores da escola





É preciso refletir sobre o que se pretende com o ensino fundamental, sobre seu currículo como um todo e as expectativas que se tem a respeito das pessoas que terminam essa fase de escolarização; sobre a realidade da escola e suas condições de trabalho para viabilizar as metas pretendidas; sobre a inserção deste Projeto na escola - sua incorporação como parte de um projeto comum de melhoria do atendimento escolar para todas as classes e todos os alunos; e, ainda, sobre o crescimento anterior dos alunos. Quando um grupo de educadores escolher e indicar conteúdos e procedimentos de ensino, suas escolhas estarão pois ancoradas num contexto mais amplo de desafios e problemas, bem como de concepções norteadoras.

A reflexão sobre o fracasso escolar, compreendido à luz da mesma lógica excludente que preside os contrastes e a desigualdade social em nosso pais, reforçou a importância de possibilitar o acesso desses jovens ao conhecimento escolar, como defesa da distribuição mais ampla e eqüitativa de bens e serviços em nossa sociedade. Nessa distribuição, procurou-se oferecer pistas para o melhor trabalho pedagógico possível para favorecer o crescimento desses alunos, até então marginalizados na escola. Discutindo as diferenças de atendimento escolar entre os vários grupos sociais, Silva (1992, p84) ressalta a importância de reivindicar equalização na distribuição do currículo escolar, mesmo sem defender "que uma distribuição igualitária seja um meio para a justiça social ou para a transformação da sociedade. A igualdade na distribuição dos bens educacionais é, nessa perspectiva, um elemento de justiça social por si só, no mesmo sentido em que é, por exemplo, a distribuição igualitária de atendimento de saúde"

Mas, considerando a situação dos alunos:

- Qual conhecimento distribuir, com vistas a favorecer sua volta ao ensino regular? Como equipá-los para ampliar sua compreensão de mundo?

- 0 que oferecer, nos vários componentes, para que conheçam e compreendam este mundo e este tempo?

- 0 currículo básico do Paraná, que enfatiza a importância de conteúdos relevantes e de larga abrangência explicativa, orientou nossa busca nesse sentido; procuramos captar a visão de mundo em suas indicações, perguntando:

. 0 que se propõe?

. A quem interessa saber essas coisas?

. Onde estão as contradições, e conflitos, os problemas?

. Quem tem vez nesse discurso?

. Como entra o aluno, sua cultura, sua história?

Assim, além de indicar os conteúdos específicos das diferentes disciplinas, é preciso prever um conjunto de aprendizagens básicas e instrumentais em torno da leitura e da escrita, assumindo que essas aquisições - importantes para qualquer cidadão e não só para estudantes - podem ser desenvolvidas em todas as disciplinas e orientadas por todos os professores. Assim, enfocamos o ensino e os conteúdos de forma ampla, chamando a atenção de todos os professores para funções que freqüentemente se diluem num currículo centrado apenas em conhecimentos básicos das disciplinas. Insistimos nessas aprendizagens comuns, pois sabemos que aí reside um grande problema ligado ao insucesso dos alunos.

Os estudos da teoria crítica do currículo têm nos trazido muitas contribuições e alertas, suficientes para compreender que o currículo real, o que se desenvolve na escola, é muito diferente do currículo oficial, documentado, recomendado.

Há uma dimensão de elaboração do currículo, localizada indiscutivelmente no interior da escola, muitas vezes não reconhecida de modo clara pelos educadores. A própria organização das pessoas e do trabalho na escola, de seus tempos e espaços, é uma parte desse currículo ao impor cortes, fragmentações e simplificações aos conteúdos, desenhando modos de ensino e aprendizagem, limitando os contornos do conhecimento que a escola distribui. 0 que estamos ensinando aos alunos? Freqüentemente, ensinamos a gravar informações soltas e desconexas para se sair bem nas provas, a entender que o conhecimento valorizado na escola resume-se a esses fragmentos. E ainda, como dimensão principal do currículo implícito, na escola circulam valores e atitudes, além das normas e regras de comportamento, regulando a que se pode e não se pode fazer ou falar, em que situações, com que objetivos; há os modos aceitos e valorizados de se dirigir às diferentes pessoas, responder a campainhas, ocupar as salas e os pátios, realizar tarefas; há um aprendizado constante que permite a cada um saber o seu lugar, quem manda a quem obedece, quem fala e quem cala, quem tem mais valor, quem importa para o professor, que conhecimento é mais importante...

Todas essas aprendizagens implícitas, tão naturalizadas que podem passar despercebidas, criam expectativas em relação aos alunos; elas também fazem parte do que a escola ensina, construindo seu currículo oculto; este precisa ser flagrado a problematizado, numa reflexão sobre o sentido das relações a práticas instaladas no cotidiano escolar para a formação de cidadãos autônomos, responsáveis a criativos.

A importância da reflexão sobre as práticas presentes na escola é que por meio dela, podemos perceber relações de poder e mecanismos de discriminação muito semelhantes aos que estão presentes em nossa sociedade, servindo para a exclusão e desigualdade que tanto criticamos. Segundo Apple a King (1985, p.51), essa reflexão é importante porque o professor que compreende sua posição e suas práticas no contexto mais amplo está em melhor situação para entender o que, quando e como pode alterar em seu trabalho. Ainda segundo esses autores, para todos nós, que somos parte dessa sociedade, é importante compreender como ela se produz, como perpetua condições de existência através da seleção e distribuição de certos conhecimentos para certos grupos sociais, como mantém a coesão divulgando visões de mundo que legitimam a desigualdade e estratificação social. E a nós, que somos educadores, perguntam ainda: "Podemos nos dar ao luxo de renunciar a pensar e compreender essas coisas?".

Pensar na prática desenvolvida na escola e perceber relações entre a vida escolar e o contexto social mais amplo pode contribuir não só para entender os limites da ação pedagógica, mas também para a superação de alguns, através do trabalho coletivo dos educadores.

Entendemos que o trabalho coletivo comporta conflitos e divergências assim como acordos e a consolidação de um projeto educativo comum. Partindo da discussão e explicitação das práticas e da reflexão sobre sua realidade, os professores conseguem propor e desenvolver uma atuação formativa coerente. Isso torna possível equilibrar as escolhas para que os alunos tenham acesso tanto a instrumentos de adaptação às normas e exigências de nossa sociedade, quanto às ferramentas que os ajudem a ser respeitados e acolhidos e a participar efetivamente da construção de uma sociedade mais justa e igualitária.

Assim, o momento de elaboração da proposta pedagógica exige que se analisem os parâmetros curriculares, os recursos disponíveis, a prática desenvolvida perguntando exaustivamente o porque e para que dessas escolas, em que direção isso caminha, como direcionar o currículo de modo a favorecer os alunos e tornar o trabalho mais lúcido e satisfatório.



Ensinar e Aprender: Reflexão e Criação.Vol. 1

Maria das Mercês Ferreira Sampaio

Referências bibliográficas

APPLE, Michael W. Repensando ideologia e currículo. In: MOREIRA, Antonio Flávio, SILVA, Tomás Tadeu (orgs.) Currículo, cultura e sociedade. São Paulo: Cortez, 1994. p.39-57.

APPLE, Michael W, KING, N. R. Qué enseñan las escuelas? In: GIMENO SACRISTÁN, José, PÉREZ GOMÉZ, André (orgs.) La enseñanza: su teoria y su práctica. Madri: Akal, 1985. p.37-53.

GIMENO SACRISTÁN, José. Escolarização e cultura: a dupla determinação. In: SILVA, Luiz Heron et al. Novos mapas culturais, novas perspectivas educacionais. Porto Alegre: Sulina, 1996. p.34-58.

LEITE, Siomara B. Considerações em torno do significado do conhecimento. In: MOREIRA, Antonio Flávio (org.) Conhecimento educacional e formação do professor. Campinas: Papirus, 1995. p.11-25.

SAMPAIO, Maria das Mercês F. Problemas da elaboração e realização do currículo. Idéias, São Paulo, n.26, p.143-50, 1995.

SANTOS, Lucíola L. C. P., MOREIRA, Antonio Flávio. Questões de seleção e de organização do conhecimento. Idéias, São Paulo, n,26, p.47-65, 1995.

SILVA, Tomás Tadeu. O que produz e o que reproduz em educação. Porto Alegre: Artes Médicas, 1992



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